quarta-feira, 19 de agosto de 2015

AOS 84 ANOS, AUGUSTO DE CAMPOS LANÇA LIVRO INÉDITO E FALA SOBRE TRAJETÓRIA DA POESIA CONCRETA

Em "Outro", autor e tradutor mantém tradição política do movimento com "desomenagem" ao golpe de 1964

POR GUILHERME FREITAS
18/07/2015 6:00 / ATUALIZADO 23/07/2015 12:48

O poeta Augusto de Campos - Divulgação/Fernando Laszlo

RIO - Ficou na cabeça de Augusto de Campos uma frase que ouviu de Décio Pignatari dias antes da morte do amigo, em dezembro de 2012. Em seu último encontro, eles conversaram sobre a efervescência da poesia concreta e da arte brasileira nos anos 1950 e 60. Para definir aquele momento de explosões criativas, debates, manifestos e dissidências, Décio cunhou uma expressão tão sintética quanto os mais provocantes poemas da época: “Movimentos movimentam”.

Reflexos do movimento concretista estão por todo lado em “Outro” (Editora Perspectiva), primeira reunião de inéditos de Augusto de Campos desde “Não”, publicado em 2003. A começar pela dedicatória do autor aos companheiros de Noigandres, grupo que impulsionou a poesia concreta com a revista homônima fundada em 1952: seu irmão Haroldo de Campos (1929-2003), Décio Pignatari (1927-2012), José Lino Grünewald (1931-2000) e Ronaldo Azeredo (1937-2006). O livro, que já está à venda, será lançado oficialmente em um evento na Casa das Rosas, em São Paulo, em 3 de agosto, às 19h.

Aos 84 anos, Augusto mostra em “Outro” o interesse de sempre pela dimensão “verbivocovisual” da escrita, conceito que os concretistas buscaram em James Joyce para definir a integração entre aspectos verbais, visuais e sonoros do poema. O novo livro do autor de clássicos como “Viva vaia” e “Luxo” inclui obras como “Ter remoto”, com versos em letras espelhadas descrevendo o bater de asas de uma borboleta, ou “Humano”, formado a partir de um painel com os 64 hexagramas do I Ching. Há ainda links para “clip-poemas” na internet.


Um dos renovadores da tradução no Brasil, Augusto reúne em “Outro” novas “intraduções”, poemas visuais criados a partir de fragmentos vertidos de autores estrangeiros. Entre eles, estão alguns a que se dedicou por toda a carreira, como Valéry e Mallarmé (uma frase deste último inspirou o poema ao lado). Da americana Marianne Moore, traduz os versos: “Poesia. Eu também a abomino. Lendo-a todavia com total desprezo a gente descobre afinal um lugar para o genuíno”. Augusto apresenta ainda recriações de trechos de autores de língua portuguesa, como Fernando Pessoa e Raul Pompeia, que define como “outraduções”.

Em entrevista por e-mail, Augusto fala sobre o novo livro e relembra a trajetória da poesia concreta. A atuação política do movimento é evocada em "Outro" com uma nova versão do poema “Brazilian ‘football’”, publicado pela primeira vez em 1964 na imprensa britânica, que denunciava o regime militar com um jogo entre as palavras “goal” e “gaol” (cadeia). Augusto diz ter revisitado o poema agora como uma “desomenagem” ao golpe de 1964 e aos “golpistas de todos os matizes do presente, chupins desmemoriados do poder”.

— Não sei se o que faço é ainda poesia concreta. Fiquei talvez mais “pop”. Mas sempre “verbivocovisual” — diz Augusto, para quem “quase toda a intelligentsia brasileira” resistiu e ainda resiste ao projeto concretista. — Certa vez, escrevi que a poesia-bumerangue-concreta, depois de exportada, iria recair em cabeças duras. Está aí. Vão ter de engoli-la. “Movimentos movimentam”.


“Outro” é dedicado a seus companheiros de Noigandres: Haroldo de Campos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald e Ronaldo Azeredo. Por que a menção a eles? Como avalia a contribuição do grupo para a literatura brasileira?

Dediquei “Profilogramas“, livro comemorativo dos meus 80 anos, aos artistas visuais com quem convivi. Deles, apenas Judith Lauand e Alexandre Wollner estão vivos. É natural que nesta quadra da vida queira lembrar os poetas do meu “inner circle“ que já se foram. Décio, abalado pelo mal de Alzheimer nos últimos dias, dizia, relembrando os tempos vibrantes das discussões literárias e artísticas dos anos 50 e 60: “Movimentos movimentam.” Prefiro não fazer a avaliação da contribuição do nosso grupo para a literatura brasileira, tendo sido um participante dele. Direi apenas que quase toda a intelligentsia brasileira apostou contra ele. Em parte, ainda é contra ele. Certa vez, diante do muro de negação com o qual nos defrontamos durante meio século ao lado de minoritários aplausos, eu escrevi que a poesia-bumerangue-concreta, depois de exportada, iria recair em cabeças duras. Está aí. A outros cabe avaliá-la. Mas vão ter de engoli-la. “Movimentos movimentam.”


Em “Outro”, vemos a continuidade de seu interesse pela dimensão “verbivocovisual“ da escrita. No poema “Ter remoto”, por exemplo, o sentido dos versos se desdobra na forma, com o uso de letras espelhadas. Qual é o lugar desses novos poemas na trajetória de sua investigação sobre a poesia concreta?

Não sei se o que faço é ainda poesia concreta. Certamente não se enquadra na fase “ortodoxa” dos poemas minimalistas bauhausianos, que foi até o início dos anos 60, pautada pelo projeto (não decreto) do “Plano-piloto para a Poesia Concreta”. O golpe militar de 1964 desarrumou nossa utopia construtivista. Acrescentamos ao Plano um p.s. extraído de Maiakóvski, “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”— e tentamos fazer o mais difícil: uma poesia engajada sem concessões às “palavras da tribo”. Parti com Waldemar Cordeiro para a arte concreta semântica, os “popcretos” que expus em dezembro daquele ano na galeria Atrium, no centro de São Paulo. Os tipos “futura” deram lugar à tipografia errática dos jornais e revistas para uma “explosição de expoemas colhidos e escolhidos no aleatório dos ready made”, no “caos antropofágico brasileiro redestruído pela manchetomania de um anarquiteto”. Terminada a mostra, quando fomos retirar os trabalhos, todos estavam danificados com insultos e palavrões. Num dos meus poemas escreveram a palavra “lixo”. Foi o toque para o poema LUXO, que publiquei no ano seguinte com os fototipos “kitsch” que vi num anúncio de apartamentos “de alto luxo”, e que compus de modo a formar, como um palavrão-poema gráfico, o reverso LIXO. Depois dos “popcretos” passei a organizar meus poemas com “letraset“ e, por último, com fontes digitais que exploram a iconicidade. Nessa área de pesquisa se situa o poema “Ter remoto”, inspirado no “efeito borboleta” de Lorenz. Fiquei talvez mais “pop”. Mas sempre “verbivocovisual”.

Nova versão do poema “Brazilian ‘football’”, de Augusto de Campos, publicado pela primeira vez em 1964 - Divulgação/Augusto de Campos

Em 2014, ano em que o Brasil recebia a Copa do Mundo e relembrava cinco décadas do golpe militar, você fez uma nova versão do poema “Brazilian ‘football’”, de 1964, que aproximava futebol e ditadura. Por que decidiu revisitar esse poema de 1964 em 2014? Qual é a dimensão política da poesia concreta?

Toda poesia já tem em si mesma uma dimensão política. Em essência, o poeta está em estado de greve. Mas sofre também os impactos emocionais do seu contexto, e a poesia concreta não pôde ficar indiferente a eles. “Brazilian ‘football’” foi publicado em setembro de 1964 no “Times Literary Supplement” de Londres em páginas que divulgavam a poesia concreta brasileira. Com ele eu denunciava, em tempo relativamente real, passando de GOAL a GAOL (“cadeia”), as prisões da ditadura: “1958 — Goal. Goal. Goal. 1962 — Goal. Goal. Goal. 1964 — Gaol. Gaol. Gaol“. A data 2014 se refere ao novo layout com o qual relembro o poema. Ao revisitá-lo, pensei em uma “desomenagem” ao golpe de 1964. Hoje, dedico-o aos golpistas de todos os matizes do presente, chupins desmemoriados do poder.


No prefácio, você lembra que, para produzir os poemas coloridos de “Poetamenos” (1953), usava carbonos de várias cores. Que possibilidades o computador e a internet abriram para a poesia concreta?

Desde o início da década de 1990, quando adquiri o meu primeiro computador doméstico, passei a produzir diretamente nele. O computador abriu todas as possibilidades que eu vislumbrava no prefácio a esses poemas: “Mas luminosos ou film-letras, quem os tivera!”. Hoje, com um simples processador de textos, realizo em minutos o que eu levava horas para montar em minha máquina de escrever. Ainda “jovem”, aos 60 anos, estudei softwares de desenho e de animação e pude, sem sair de casa, utilizar todos os recursos que queria. Cores, sons, ação. A princípio converti poemas escritos em versões animadas. Depois passei a pensá-los na linguagem digital. Como afirmo no prefácio atual, “Outronão”, Walter Benjamin foi profético quando previu, sob invocação do “Lance de dados“ de Mallarmé, que no futuro o poeta ao abrir um livro veria desabar sobre ele uma nuvem de letras-gafanhotos móveis e coloridas e teria que aprender a lidar com grafias e diagramas. Não quer dizer que toda poesia deva seguir esse caminho. Mas para mim é um caminho estimulante. Alguns textos de “Outro” são formas estáticas de poemas que parecem pedir movimento. Outros têm versões animadas que me permitem explorar as virtualidades cinéticas e icônicas da palavra. A internet é o veículo ideal para eles.


“Outro” reúne traduções de autores que são referência corrente em sua obra, como Mallarmé e Apollinaire. Qual tem sido a importância da tradução para sua poesia? E como avalia o estado atual da tradução no Brasil?

Pelo menos dois terços do meu trabalho de poeta consistem em traduções. Sempre postulei a tradução criativa em lugar da literal. Esta pode ser muito útil mas não pode recriar o original. Acho que já se tem maior consciência disso. O maior problema das traduções de poesia em verso entre nós é que hoje poucos dominam a tecnologia do verso. Voam pés quebrados. Mas não basta o domínio do verso. Tradução é performance. Como a interpretação musical. Bach “made new” por Glenn Gould. Beethoven “made new” por Boulez. Gershwin “made new” por Janis Joplin. Todo mundo gosta de jogar futebol. Mas uns jogam melhor do que os outros.


Na apresentação, você cita Marianne Moore para dizer que “não gosta de poesia”, embora “só leia poesia” e “o que tenha a ver com poesia”. Uma pergunta talvez muito abrangente: o que você entende hoje por poesia?

Só não gostam de poesia os poetas que sabem fazê-la, como Marianne Moore. O poema a que me refiro e do qual dou uma “intradução” tem duas versões, das quais ela preferiu a mais breve, remetendo a versão estendida para as notas. Na minha “intradução”: “Poesia. Eu também a abomino. Lendo-a todavia com total desprezo a gente descobre afinal um lugar para o genuíno.” Minha relação com a poesia é muito intensa e contraditória, como imagino que seja a de Marianne, que pratica uma antipoesia, extraindo poesia dos contextos menos poetizáveis. Não compartilho do júbilo recreativo com que tantos colegas meus gostam de exibir seus poemas. Creio com Bernardo Soares que “não há obra de artista que não pudesse ter sido mais perfeita. Lido verso por verso, o maior poema poucos versos tem que não pudessem ser melhores, poucos episódios que não pudessem ser mais perfeitos” etc. Prefiro a poesia dos que vejo menos sujeitos à imperfeição. Leio-os, tento aprender com eles, trituro-os, traduzo-os, “intraduzo-os” e tento fazer outra coisa. No meu ouvido o eco do oco de Bernardo Soares, semi-heterônimo e também, como descobri, semianagrama de Fernando Pessoa. A ele dedico uma “outradução” ou poema não original, “remix” visual de si mesmo. Pessoares: “aérea a hora era uma ara onde orar”. Para mim poesia é o que não é poesia.

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