quinta-feira, 6 de outubro de 2016

CONVERGÊNCIAS: POESIA CONCRETA E TROPICALISMO - LÚCIA SANTAELLA

Excertos que eu julguei serem importantes para certo entendimento da poética concretista e marginal:

“Ser escritor, no Brasil, já é difícil. Ser poeta, uma obstinação tão sem remédio e sem compensações, que só mesmo acreditando, como Fernando Pessoa, cumprir informes instruções do Além. De qualquer modo, ser poeta para mim é inelutável. A flor flore. A aranha tece. O uirapuru, no fundo da floresta, toca uma vez por ano a sua flauta, para ninguém. O poeta poeta. Quer o vejam, quer não, ele pulsa. O pulsar quase mudo.” - Augusto de Campos

“... na poesia concreta ocorre a atomização vocabular.”

“... os impressionistas beneficiaram-se sobremaneira dos avanços da química e da física, que provocaram um obstinado e rigoroso trato com a materialidade das tintas, a fim de obtenção de novas gamas e tonalidades.”

“... do mesmo modo que o jornal não é uma sucessão de texto mais ilustração, mas uma nova forma a exigir a ginástica do olho. Se o livro exigia um ritual de leitura assentado num silêncio quase sacro, o jornal vem despido da “aura” quer pelo baixo custo, que pelo formato e pela mobilidade oferecida pelo seu quadro visual: a superfície plana da página desdobra-se num mosaico de pontos de vista a exigir uma nova dinâmica ocular.”

“É por essas razões que nos recusamos, já de saída, a catalogar poesia concreta no âmbito restrito das práticas da linguagem erudita em oposição ao Tropicalismo, este, no âmbito estrito do popular. Ao contrário, ambos operam e partem de uma mesma esfera: a arte. A diferença se dá nos meios técnicos de produção e difusão disponíveis nas áreas em que cada uma dessas criações opera. Errôneo, portanto, afirmar que a poesia concreta, “de per si”, se fecha no casulo dos poucos privilegiados que têm acesso aos estratos literários da cultura, enquanto a música popular, por sua própria natureza, se abre para a margem mais ampla das massas.”

“A poesia concreta do tipo ortodoxo, como foi praticada nos anos 50, constitui apenas uma parte do nosso trabalho... Os poemas nunca serão deduzidos de uma teoria e sim esta deles. A teoria vem sempre depois, para ordenar o caos e projetar um caminho.”

“Tarefa do poeta concreto será a criação de formas, a produção de estruturas-conteúdos artísticas cujo material é a palavra.” - Haroldo de Campos

“O poeta é um designer da linguagem.” - Décio Pignatari

“Mas é Augusto de Campos que poderá, na conjugação de Maiakóvski, dizer-nos porque isso ocorre: “A poesia toda é uma viagem ao desconhecido. Com ou sem palavras, não faz por menos. E não há etiqueta, mordaça ou camisa-de-força que impeça o poeta de partir.”

“Não há mudanças nos conteúdos de uma linguagem sem a revolução nos modos de formar, estruturar essa linguagem. Contudo, revoluções na estrutura de uma linguagem só se consumam substancialmente, isto é, no limite, quando são transformados os meios de produção dessa linguagem. É em razão disso que, para Benjamin, a tarefa do artista não é apenas a de fazer uso crítico-ativo dos novos meios técnicos de produção da linguagem, mas também a de transformar os modos de produção artística mais antigos.”

“É certo que os poemas concretos apresentam um caráter de comunicação direta, breve, que incide sobre a sincronização dos sentidos e que impede a dissipação do ato receptivo em voos subjetivos imaginosos que levariam o receptor para longe do universo poemático. No entanto, esses poemas criam também a exigência irrecusável de uma modificação nos comportamentos da leitura, consensualmente tidos como literários. O choque, a necessidade de mudanças nos hábitos arraigados de leitura produz, leva ao distanciamento, ao mesmo tempo que os poemas como corpos sígnicos-sensíveis apelam para uma aproximação lúdico-sensória. Este entrechoque gera no receptor, em primeira instância, a impressão de ininteligibilidade do poema. Ironicamente, essa impressão é gerada justo porque esses poemas não são feitos para serem inteligidos no sentido estritamente racional do termo ou no sentido do devaneio vaporoso travestido de racionalidade. São feitos entre outras coisas, para a regeneração da sensibilidade perceptiva, para tornar mais humanos os sentidos humanos. (Questão a que as outras artes - visuais ou musicais - também não estão alheias e que, aliás, não passou despercebida a Marx).”

“A expansão da indústria de best-sellers entorpecentes e do livro de entretenimento ou de receituário do bom-viver se viu e se vê acompanhada pelo encolhimento da oferta e demanda de poesia. Diante desse quadro, “não parece absurdo afirmar”, conforme nos diz G.E. Carneiro, que, “em matéria de oferta editorial, toda poesia brasileira contemporânea é marginal.”

“Não apenas, desde o início de sua produção, os poetas concretos não ignoraram, mas até hoje continuam alertas à necessidade histórica de transformação dos meios e modos de facção da poesia e da apropriação dos novos recursos materiais e técnicos que determinam a natureza desse fazer, assim como dos modelos de linguagem e sensibilidade que, nesse fazer, se consubstanciam.”


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